O estado de Minas Gerais é inteiramente farto de riquezas históricas deslumbrantes, tais como as igrejas barrocas repletas de detalhe e drama artístico, assim como as mais diversas tradições materiais e imateriais, celebrações religiosas, memórias e saberes regionais passados de geração em geração. Todo esse caldo cultural há muito tem se revelado capaz de dinamizar a economia, principalmente através do turismo histórico — o que podemos observar em cidades como Ouro Preto, Congonhas e Tiradentes. Mas, quando voltamos o olhar às inúmeras cidades mais afastadas do norte e centro-oeste mineiro, de menor porte, parece haver ainda uma conscientização muito tímida sobre a riqueza cultural material desses lugares, quando construções marcantes do século passado e antigos casarões são demolidos sem cerimônia, dando lugar a novos edifícios insípidos e desprovidos de qualidade arquitetônica mínima para o nosso clima tropical. Vide os prédios em formato de “caixa de sapato”, revestidos com cerâmica e sob a ausência de telhados ou pingadeiras adequadas, o que prejudica tanto a manutenção quanto a estética das fachadas, além de comprometer a paisagem urbana construída.
Muitos desses casarões antigos ainda em pé, com décadas de existência e trazendo marcas estilísticas fascinantes — como as fachadas decoradas com elementos art déco e art nouveau, varandas generosas e grandes telhados, paredes espessas com bom isolamento termoacústico, janelões majestosos e pés-direitos elevados e refrescantes — carregam consigo uma forte qualidade construtiva, conforto lumínico e térmico, assim como a memória material de um outro tempo histórico. E podem, sim, ser inseridos no contexto da atualidade de maneira vibrante e virtuosa, servindo como locais de realização de atividades culturais diversas, tais como teatros, bibliotecas e museus, desde que se realize uma reforma respeitosa de seus espaços — um restauro ou retrofit tecnicamente rigoroso. Esses novos usos não apenas dinamizam a economia da cidade, mas o fazem num sentido amplo, para além do interesse puramente turístico (necessário, mas não suficiente), entregando aos moradores dessas mesmas cidades lugares para o convívio social pleno, o lazer e a educação enquanto processo continuado e ininterrupto de aquisição de cultura e conhecimento.
Algumas cidades do centro-oeste mineiro se destacam por ofertar tais lugares de cultura de maneira bastante razoável, como é o caso de Abaeté, cuja Secretaria de Cultura e Turismo funciona no magnífico casarão do antigo Fórum, no centro da cidade — com suas grandes portas e janelas antigas, suas paredes de sessenta centímetros de espessura, algo bastante peculiar e interessante. O local ainda conta com um trajeto museográfico em suas instalações internas, com espaços dedicados ao resgate da memória abaeteense em áreas como a música, os esportes e as celebrações religiosas do Congado e das festas católicas tradicionalíssimas. Entretanto, há que se questionar: qual o ponto ótimo de estímulo e gestão estatal desses lugares de memória e cultura? A iniciativa privada é capaz de abraçar essa demanda e dinamizar a economia de forma social e culturalmente responsável com as memórias de Minas? Ou devemos encará-la apenas como uma força de destruição criativa contemporânea, sempre em busca da novidade pela novidade, irrefreável? E como, afinal, os incentivos estatais realmente funcionam? Quais são os benefícios concedidos aos proprietários de imóveis tombados?
O ponto ótimo da cooperação público-privada está em um posicionamento estratégico de ambas as partes: tanto do Estado — como observador e fiscalizador da manutenção e respeito para com essas memórias construídas, através de órgãos como o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), assegurando a preservação desses espaços — quanto da iniciativa privada, encarregando-se de transformá-los em lugares vibrantes e convidativos, conferindo-lhes usos atuais. Ideias não faltam. Vamos a algumas: que tal uma livraria-café? Um lugar onde as pessoas possam comprar, alugar ou emprestar livros em boa quantidade, livros de alta qualidade, estantes de poesia e prosa da maior envergadura literária — de Guimarães Rosa a Tolstói — e ainda degustar um bom cafezinho mineiro, apreciando a arquitetura restaurada de um casarão do século passado? Ou então um restaurante temático? Experiências gastronômicas são sempre bem-vindas. Até uma loja de roupas femininas, com uma abordagem inovadora, pode se beneficiar de cenários bastante instagramáveis, com jardins e espaços internos de uma arquitetura antiga preservada — marcante por ser humanizada, repleta de detalhes decorativos, cores vibrantes, materiais aconchegantes e terrosos, e, como já dito, de notável qualidade construtiva adaptada ao clima tropical da nossa região. Inclusive, jardins que valorizam os espécimes naturais do Cerrado são bastante apreciados, pois a flora deste bioma é de uma beleza exuberante e dramática — o bioma do centro-oeste mineiro. Imagine-se jantando em um restaurante com iluminação difusa, todo o espaço poeticamente harmonizado com uma luz quente e discreta, espalhada em pontos-chave do cenário, destacando a textura rugosa e áspera da folhagem dos jardins e das paredes em taipa de pilão, as sombras em contraste e os galhos retorcidos de um ipê-verde esbelto, elegante, aromático — enquanto você e sua família degustam o melhor da culinária mineira ao som de uma moda de viola caipira ao vivo e sob a brisa fresca do anoitecer, que invade o casarão por todas as grandes janelas ao redor, enquanto a música ambiente se entrelaça com o piar dos pássaros nos jardins e a algazarra das crianças nas calçadas. Nós, os habitantes das pequenas cidades, merecemos viver experiências dessa qualidade — e temos o potencial econômico para promovê-las.
Considerando o ponto de vista dos proprietários de imóveis tombados, convém que o Estado forneça um pacote atrativo de benefícios e incentivos, tais como: isenções fiscais sobre IPTU, subvenções para reformas, restauro e conservação, isenções de tributos estaduais e municipais, e programas de compra ou desapropriação dos imóveis históricos a preço de mercado. O Estado deve compreender os estímulos e interesses naturais dos proprietários — o que poderíamos chamar de teoria dos jogos — para que o tombamento do imóvel se transforme em uma realidade atrativa e economicamente promissora desde o início: um ganha-ganha que só pode acontecer plenamente na dinâmica de mercado. Isso, porém, não significa entregar tais imóveis à especulação imobiliária desenfreada ou à “destruição destrutiva” da nova anti-arquitetura emergente (que eu carinhosamente chamo de pseudo-modernismo, os famosos edifícios-caixotes). Neste cenário, o Estado ainda exerce o seu papel de fiscalizador, tendo a prerrogativa da compra e o dever da conservação — podendo inclusive revender o imóvel tombado a novos interessados, desde que mantidas as regras de preservação de suas características históricas e construtivas. Assim, o Estado atua como um intermediador legítimo das livres trocas de mercado.
Finalmente, com boa vontade política e o fomento social orgânico dessa realidade, podemos construir uma cidade economicamente enérgica, culturalmente vigorosa e empolgante — entregando aos seus cidadãos lugares de uma interessância fascinante em muitas camadas. O que poderíamos nomear, enfim, como o “direito à cidade”: uma cidade acessível, agradável, que nos convida para fora dos nossos aposentos e nos arranca das prisões contemporâneas da tela do celular e da televisão, estimulando nossos corpos a viver o mundo real, incentivando trocas humanas, diálogos, rodas de conversa, lazeres, risos e danças! Não moramos apenas em nossas casas — moramos na cidade. A cidade é a morada do corpo social e dos indivíduos enquanto singularidades vivas. Logo, convém que seja um lugar de vida urbana agradável e atrativa, com várias opções de vivências em seu território.
One thought on “O patrimônio histórico na economia criativa do setor cultural e o direito à cidade e ao lazer”
Excelente texto, bem escrito, que levou – me à imaginação os espaços descritos e a maravilhosa sensação de lá estar. Realmente, em Abaeté, por ser uma cidade em desenvolvimento, lamentavelmente, estamos sofrendo a falta da sensibilidade histórica e artística que faz com que obras de arte da arquitetura sejam demolidas desenfreadamente em evidente desrespeito a história de nossa terra madre.