Publicado na Edição nº149 de fevereiro de 2008
A poucos dias das Eleições 2024, que tal conhecer um pouco mais da história da velha política de Abaeté? Na edição de fevereiro de 2008, o Nosso Jornal publicou uma entrevista com o ex-udenista Júlio Alberto Filho, que deu uma verdadeira aula da história política da Cidade Menina, na consciência de que “quem olha para o passado é capaz de vislumbrar melhor o futuro”.
NJ: Júlio Alberto, que lembranças o senhor guarda daquela política antiga de Abaeté, marcada pelas grandes lideranças, pelas violentas disputas eleitorais, pelo ranço partidário?
Quando comecei a fazer parte ativa da política de Abaeté, eu ainda não era eleitor. Naquele tempo, só se votava a partir dos 21 anos de idade. Em 1946, aos 17 anos, fazendo o científico em Belo Horizonte, eu participei da campanha do Dr. Edgardo da Cunha Pereira Filho, candidato da UDN à Prefeitura de Abaeté. Foi a primeira eleição após o regime ditatorial de Getúlio Vargas, tendo como interventor em Minas o senhor Benedito Valadares.
Dr. Edgardo foi eleito, era uma pessoa muito séria, honesta, teve um mandato tranquilo, sossegado, sem perseguições políticas. Ele era um dos nossos bons médicos. Era comum, em Abaeté, os médicos serem chefes políticos, como Dr. Viana, Dr. Amador, Dr. Canuto, depois Dr. Guido, Dr. Fernando…
A política em Abaeté era violenta, mas a cidade, de maneira geral, era tranquila. Graças a Deus, naquele tempo, não havia a droga, que hoje é o inferno da sociedade brasileira. Os prefeitos enfrentavam uma dificuldade muito grande, porque a situação financeira de toda prefeitura era dramática. Tudo dependia do governo estadual ou federal.
Quando o município tinha a felicidade de ter o seu prefeito do mesmo lado do governador, ainda se arrumava alguma coisa. Mas quando era adversário, não arranjava nada. Inclusive porque o chefe político adversário do prefeito no município era o primeiro a pedir ao governador para não atender nenhum pedido dos adversários. Não olhavam o interesse da sociedade e sim o interesse político pessoal.
NJ: Essa velha política provocava um atraso muito grande no município?
Cito dois fatos para ilustrar o tamanho desse prejuízo. Quando Dr. Viana era chefe político em Abaeté, ele estava trazendo uma estrada de ferro para a cidade, exatamente nesse bairro onde moro hoje, o Simão da Cunha. Aqui era a fazenda dele. Já tinha preparado o local onde seria a estação do trem de ferro e onde correriam os trilhos. Estava tudo cortado com picareta e enxadão, porque, naquele tempo, não tinha máquina, trator, nada.
Mas, na eleição de 1916, Dr. Viana foi derrotado pelo Dr. Antônio Amador, primo primeiro da mulher do Dr. Viana. Ao invés de continuar este projeto, Dr. Antônio Amador levou a estrada de ferro para Barra da Paraopeba, onde ele tinha fazenda. Imagine o que nossa cidade perdeu com isso! Se Abaeté tivesse a estrada de ferro naquela época, o nosso progresso seria outro.
Houve outro fato. Quando Juscelino Kubitschek era presidente da República, a rodovia de Belo Horizonte para Brasília ia passar dentro de Abaeté, trazendo um grande progresso para nosso município. Mas o chefe do PSD naquela época, Dr. Amador Álvares da Silva, era amigo pessoal do Juscelino e pediu para a estrada não passar aqui dentro, porque ia ajudar no governo municipal do Dr. Edgardo. Então, a estrada passou por fora, por Felixlândia, Três Marias. Isso foi outro prejuízo horrível para a região, cortou o progresso que haveria aqui. João Pinheiro, por exemplo, era um fim de mundo, e hoje é uma boa cidade porque a estrada passou por lá. Esse progresso era para estar aqui dentro de Abaeté, se não fossem as picuínhas políticas da época.
NJ: Isso acontecia de ambos os lados?
Não me lembro de nenhuma grande obra que tenha sido desviada pela UDN para prejudicar os adversários do PSD. Pelo contrário. O udenista Magalhães Pinto, por exemplo, foi um dos melhores governadores do Estado para Abaeté. No seu governo, foram inauguradas doze ou treze obras aqui. Dentre elas, a Cemig, o Fórum, o Ginásio Estadual, o Grupo Senador, a cadeia.
NJ: Mas todos os partidos promoviam as perseguições, as exonerações dos adversários…
Cada um que entrava na Prefeitura queria “limpar a área”, tirar os adversários e colocar os seus partidários. A política aqui era uma política de família. A UDN era da família Cunha Pereira e o PSD, da família Álvares da Silva. Havia também o PR, do Dr. Canuto. O mando era pessoal deles. Quando um tomava posse, demitia todos os funcionários que podia demitir e colocava os amigos deles. Isso era normal.
Naquele tempo, o povo era despolitizado e analfabeto. A população estava, em sua maior parte, na zona rural. Cada povoado tinha o seu chefe político, um fazendeiro rico que controlava 50 ou 100 eleitores. Eles trabalhavam com as “marmitinhas de cédulas” e colocavam dentro da urna. Hoje não. Na urna eletrônica, no voto secreto, a gente digita os números do candidato e pronto. Ninguém toma conhecimento.
NJ: As campanhas eleitorais da época eram mesmo marcadas pela violência, inclusive com tiroteios?
É, o negócio era feio, muitas vezes, na base do tiro mesmo. Após o mandato do Dr. Edgardo, participei da campanha Dr. Ezequiel, uma das mais violentas que houve. Foi a maior derrota política em número de votos nesta região. Dr. Ezequiel disputou com Dr. Amador Álvares da Silva e perdeu por uma diferença de mais de 1.500 votos.
O PSD, naquele tempo, era um partido fortíssimo, de grandes tradições, originadas do Barão do Indaiá, que era avô do Dr. Amador Álvares da Silva. Na verdade, os outros políticos também eram descendentes do Barão do Indaiá. O Dr. Ezequiel era bisneto dele. O racha político teve origem quando Tenente Ezequiel de Oliveira Campos, genro do Barão do Indaiá, rompeu com o sogro na política e formaram as duas facções políticas, que mais tarde se tornaram UDN e PSD.
NJ: Fale mais um pouquinho sobre essa campanha do Dr. Ezequiel.
Essa campanha do Dr. Ezequiel foi muito violenta. Eu me lembro que nós fomos fazer um comício no Cedro, que naquele tempo pertencia a Abaeté. O Cedro era um curral eleitoral do PSD, e nós fomos na toca da onça, pra ver se arranjávamos uma meia dúzia de votos lá. Nesse tempo, a polícia, que era um fator muito importante na política, estava do nosso lado. Levamos a polícia conosco para o comício no Cedro.
Isso foi em 1950 ou 1951. E, como nós éramos jovens entusiasmados e tínhamos pouco juízo na cabeça, achamos por bem armar o nosso palanque em cima de um caminhão, em frente à casa do chefe político do PSD, o Miguel Guimarães. Junto com seus eleitores e jagunços, o Guimarães armou um esquema para não deixar a gente fazer o comício. Quando o Dr. Aloysio começou a falar, recebeu uma vaia tão grande que não teve condições de continuar. Subiu o Zé Tião, e foi a mesma coisa. Quando comecei a falar, a vaia dobrou. Eu comecei a gritar uns termos um pouco atrevidos, e o Miguel Guimarães mandou que um de seus jagunços desse um tiro em mim, pra me tirar morto do palanque. Quando ele gritou isso, o nosso único chefe político da UDN no Cedro, Vicente Melo, ameaçou: “se você mandar dar um tiro nele, eu dou um tiro em você também”.
Aí ele se acomodou, mas a vaia não parou. Então, o chefe da polícia pediu que nós tirássemos o palanque da porta da casa do nosso adversário e nos deu garantia: “quem fizesse baderna seria escorraçado pela polícia”. Colocamos nosso caminhão um pouco mais longe e fizemos nosso comício na calma, com meia dúzia de gatos pingados ouvindo… A nossa derrota no Cedro foi de mais de 90%.
NJ: O senhor já se candidatou alguma vez?
Aqui em Abaeté, não. Eu fui vereador uma vez em Pedra Azul, no Norte de Minas, e duas vezes, na Bahia, onde tive indústria de leite e derivados. Naquele tempo, vereador não tinha nenhuma remuneração, a única coisa que nós ganhávamos durante a sessão era um copo de água mineral e um cafezinho. No último ano do meu terceiro mandato, veio a remuneração para vereador. Em sinal de protesto, eu renunciei ao mandato, porque acho que vereador não deve ter remuneração. Vereador é um cargo honorífico, a pessoa trabalha em benefício da coletividade, fazendo daquilo um prazer e uma obra de patriotismo.
Depois que eu me aposentei e voltei para Abaeté, já com mais de 70 anos de idade, eu achei por bem não participar da política municipal. Mas sou preocupado com a política nacional, como cidadão brasileiro. Já fiz um curso de Ciência da Política em Brasília, e acho que o caminho político do Brasil não está bom. O país está sendo prejudicado por essa quantidade enorme, mais de 20 partidos políticos, que são verdadeiras bancas de negócios políticos.
Precisamos ter partidos mais consistentes, mais ideológicos, que se preocupem com programas, que consultem os altos interesses da nação. Que não fiquem preocupados apenas em lutar pelo poder, porque no poder eles têm a caneta para nomear e a chave do cofre pra gastar dinheiro à vontade.
NJ: Mas o que o senhor se lembra dessa divisão de Abaeté, onde os adversários partidários ou mesmo eleitores do outro partido eram tidos como inimigos pessoais?
Nessa política antiga nossa realmente tinha isso. Os partidos tinham o outro como verdadeiros inimigos. Mal, mal você dava um bom dia ou boa tarde. Era tudo muito dividido. A UDN tinha o Abaeté Clube e o PSD tinha o Nosso Clube. Então, nós, da UDN, não frequentávamos o Nosso Clube. Se o rapaz da UDN namorava uma moça do PSD, ele não poderia ir a uma festa com a namorada, porque não seria bem recebido. E vice-versa. Tinha a farmácia da UDN e a farmácia do PSD. Tudo que pudesse dividir, eles dividiam. Isso foi muito maléfico pra cidade.
NJ: O senhor acha que Abaeté ainda guarda algum resquício dessa política antiga?
Guardar mesmo, só se for uns 10%. Não é coisa que afete muito os resultados eleitorais. Essa mocidade que entrou na política é menos ligada aos conceitos antigos, àquela política do carrancismo. São pessoas que têm uma visão mais abrangente, em benefício da administração. Não resta dúvida de que, quando vão nomear alguma autoridade, geralmente nomeiam companheiro, não adversário. E isso é um erro, que acontece na política brasileira por causa do partidarismo. Os partidos procuram prestigiar os seus companheiros e aliados políticos, não estão muitos preocupados com a administração em benefício do povo. Querem é manter os seus correligionários políticos em boas condições, bons cargos, para poder contar com o apoio deles nas próximas eleições.
NJ: A gente nota que, ainda hoje, de maneira geral, as pessoas têm muito medo de falar, de expor seus pontos de vista. Não seria um resquício daquela época?
As pessoas têm medo, porque acham que, quando precisarem daquela autoridade, não irão contar com o apoio dela se falarem alguma coisa contra ela. Isso é um erro da democracia. Ainda precisamos consertar esses erros políticos. O protecionismo político é apenas um.Acho que as nomeações deviam terminar, as pessoas deviam fazer carreira no serviço público pelo seu mérito, pela competência.
Depois da 2ª Guerra, o primeiro Ministro da Inglaterra falou a frase mais importante e uma das mais sábias que já ouvi: “A democracia é o pior regime que existe, mas ainda não inventaram nada melhor do que ele”. Se nossa democracia é o pior regime que existe, é porque ela apresenta muitos defeitos e coisas erradas que precisam ser consertadas. No dia que os políticos resolverem consertar isso, teremos um regime excelente, um paraíso aqui na terra. A democracia é um governo que tem que ser originário do povo, eleito pelo povo e para governar em benefício do povo. O que temos aqui é um governo originário dos políticos, exercido pelos políticos e em benefício dos políticos. O povo fica de fora.