Quem passa pelo pequeno povoado de Tabocas nos meses de janeiro, fevereiro, março, abril, maio, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro, pode declarar, com quase certeza, que ali jaz um lugarejo esquecido e abandonado. Mas se esta visita for feita de 1 a 13 de junho, a impressão será bem diferente. Nesses dias, Tabocas se transforma em um verdadeiro santuário, onde milhares de romeiros rezam a trezena, fazem e pagam promessas, alguns testemunham sua fé vestidos de Santo Antônio e há aqueles que acompanham a procissão descalços, ou até com pedras ou latas d’água na cabeça.
É uma tradição que remonta aos primórdios da história de Abaeté. A primeira capela de Santo Antônio foi construída por volta de 1857 pelo Capitão Davi José Pereira, então proprietário da Fazenda do Saco Redondo, que abrangia o antigo e o atual povoado de Tabocas. Um dos fundadores de Abaeté, o Capitão construiu a capela para que seu filho, Padre Davi José Pereira Júnior, pudesse exercitar ali o seu sacerdócio, celebrando casamentos e batizados.
Segundo “A História de Abaeté”, de Dr. José Alves de Oliveira, anos depois, essa primeira capela e o povoado anexo desapareceram, tragados pelas barrocas que se alastraram no lugar. Para substituí-la, o povo construiu, um pouco abaixo, uma nova capela, também consagrada a Santo Antônio. Essa segunda igrejinha foi benta pelo Padre Vicente de Mendonça, em 13 de junho de 1918…
Mas também não resistiu à ação do tempo. No final dos anos 60, a capelinha estava praticamente abandonada e condenada à ruína. A festa religiosa também não era mais a mesma… Foi quando uma equipe liderada pelos festeiros Coronel Antônio Norberto dos Santos e D. Maria Barreto (viúva de Jader Moura) organizou uma grande festa, que é lembrada até hoje pelos tradicionais romeiros e frequentadores do povoado.
O resgate desta tradição da religiosidade popular
Em entrevista publicada pelo Nosso Jornal na edição de junho de 2010, o saudoso Coronel Norberto (13/05/1919 – 25/08/2017) contou que nasceu na Fazenda das Tabocas, bem à beira do córrego que leva esse nome, e começou a participar da Festa de Santo Antônio por volta de 1923: “Eu tinha quatro anos e admirava a multidão de romeiros, a devoção dos festeiros, os toques de sanfonas, as comilanças intermináveis”.
Ele lembra que a famosa festa de 1968 foi muito bem organizada, a partir de reuniões com presença de conterrâneos mais antigos, como o Nego do Jader, o Toizinho da Sá Rita e outros. A comissão enviou convites para os “abaeteenses distantes, mas não ausentes”, moradores no Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Unaí, João Pinheiro e outras cidades. “Dias 12 e 13 de junho, vimos comparecer cerca de quatro mil devotos, que renderam homenagem a Santo Antônio. No primeiro dia, o terço rezado pela multidão, levantamento do mastro, fogueira de 12 metros de altura, danças, comidas e bebidas, confraternização pela noite adentro. Dia 13, procissão da capela para os arredores do povoado, missa e leilão de gado”, recordou o Coronel.
A solenidade foi abrilhantada pela Banda de Música do 7o Batalhão de Bom Despacho. Não havia energia elétrica no povoado, mas a comissão conseguiu um gerador a gasolina que, além de iluminar o local dos festejos, proporcionou a exibição de filmes para os presentes. “Conseguimos barracas militares para um posto policial e uma enfermaria de campanha. O posto policial ficou às moscas, porém a enfermaria prestou relevantes serviços de assistência e orientação. Tudo na mais perfeita ordem”, destacou Coronel Norberto.
Com o dinheiro arrecadado, a comissão construiu os alicerces da atual capela e levantou suas paredes até a altura do respaldo. “A verba só deu para isso, mas nos anos seguintes a construção foi continuada e concluída”, completa o festeiro. Na festa de 68, foi erguido o primeiro rancho “Tabocas Bar”. Mais tarde, no tempo do Frei Patrício, a comunidade construiu um rancho definitivo. Um dos líderes desse movimento foi o empresário Francisco Lírio Ramos (Nego do Jader), responsável pela organização da festa por mais de 30 anos, que sonhava com a reconstrução da Casa do Festeiro, que antigamente hospedava várias famílias durante a festividade.
Tabocas tem história
Há muito tempo, Tabocas era uma espécie de estância, onde se hospedavam os tropeiros da região de Tiros, que passavam por ali, em carros de boi, para despachar suas mercadorias, no dia seguinte, na Estação de Abaeté (Paredão). Ali havia uma farmácia, um armazém movimentado e uma lojinha de roupas. Muitos moradores e trabalhadores da região faziam carvoeira e plantavam roça.
Quem se lembra dessa e de outras histórias são os irmãos Antônio e Margarida Álvares de Almeida, com 92 e 79 anos de idade, frequentadores da festa desde a infância. Eles contam que moravam em uma fazenda na região de Piteiras e o pai, José Zacarias Álvares de Almeida, o famoso Zé Juca, tinha uma casa no povoado. “A gente ia de carro de boi uma semana antes da festa. Levava carne, mantimentos, lata de doce, dava comida e café pra todo mundo, tudo de graça. Não tinha barraca, nada de vender nessa época”, recorda Margarida, a primeira vereadora eleita em Abaeté.
Outros parentes e moradores da região costumavam construir ranchos de pau a pique cobertos de palha para se acomodar durante a festa e também levavam comida para compartilhar com os fiéis. É o caso do Sr. José Cândido de Almeida Sobrinho (Zé do Ernesto), 86 anos, para quem “Tabocas era a festa mais esperada do ano, mais que o Natal”. Ele lembra que fazia ainda mais frio que atualmente e os festeiros também matavam bois e davam carne pra todo mundo. “A gente ia de carro de boi, e o Tõe Fidirico, um fazendeiro antigo da região, arrumava os pastos pra gente soltar a boiada. Lembro que o Frei Mário sempre ia lá no nosso rancho comer biscoito e doce de laranja. Ele gostava de contar caso e brincava de bater na meninada com o cordão de São Francisco. Era devoto demais da conta”, recorda Seu Zé.
Quando se casou com Dona Tereza Álvares da Silva, que também frequentava a festa desde criança, “Seu” Zé continuou sua peregrinação anual a Tabocas. “Com o tempo, trocamos o carro de boi pelos cavalos. Meus meninos todos vestiam de Santo Antônio. Tenho muita saudade desse tempo”, declara o devoto, que até pouco tempo, ainda participava da tradicional romaria, caminhando 13 quilômetros até o povoado. Este ano, foi de carro mesmo.
Curiosidades sobre a imagem de Santo Antônio das Tabocas, peça que, além de muitos testemunhos de fé, pode guardar mais de 300 anos de história.
Segundo pesquisas do padre Paulo Dias Barboza, ex-pároco de Abaeté, a imagem, em estilo barroco e folheada a ouro, teria saído de Portugal por volta de 1.700 e desembarcado em Pernambuco, de onde teria sido trazida para a região por um padre jesuíta, através do Rio São Francisco. Imagina-se que o religioso tenha navegado até o Paredão, de onde não teria conseguido prosseguir, devido a corredeiras, tendo se embrenhado no mato até chegar ao córrego de Tabocas. Ali, ele teria deixado a imagem e construído a primeira capela, numa época em que Abaeté não existia nem como povoado e a região pertencia à diocese de Pernambuco.
Quem contou essa história, publicada na edição de junho de 2011 do Nosso Jornal, foi Domiro Inácio Júnior, que, na época, contratou um especialista para restaurar a peça em seu estilo original. “Por cima da imagem, havia quatro ou cinco camadas de tintas, motivo pelo qual ninguém sabia que ela era em estilo barroco”, destacou Juninho. “Fiquei pensando como um homem mágico constrói essa imagem no ano de 1700, em Portugal, como ela atravessa o oceano, naquelas dificuldades, barco a vela, com piratas, mar bravo, ancora em Pernambuco, na época de índios, e chega a Abaeté para fazer tantos milagres nas nossas vidas”, ressaltou, na entrevista.
(Compilado de matérias publicadas nas edições de junho de 2000, 2010, 2011 e 2019 do Nosso Jornal)
Fotos – Arquivo Nosso Jornal
One thought on “TABOCAS, a história e a força de um pequeno santuário”
Que beleza de história! Merece ser conservada e divulgada todo ano, por ocasião da festa. Tive o prazer de conhecer o sr. Nego do Jáder.